quinta-feira, 28 de junho de 2007

Abandono

Com cuidado extremo, caminharam de mãos dadas pelas pedras cheias de limo, que formavam uma plataforma alta onde as ondas quebravam com força, levantando uma cortina de espuma bela, sonora e salgada, que se espargia em gotículas pelo ar. Ao caminharem dessa forma, protegiam um ao outro de uma queda — ele, seguindo seu instinto masculino de proteger a mulher amada e ela, seguindo o seu, feminino, de deixar-se proteger enquanto fazia o mesmo pelo parceiro.
Na conjuntura, esse cuidado todo poderia soar irônico. Todavia, era preciso cumprir o ritual.
Um deles se deu conta de que estavam calados há um tempo enorme e, mesmo assim, ninguém falou. Apenas escolheram uma parte mais plana e seca da rocha, a cerca de um metro do ponto em que terminava abruptamente, onde se sentaram. Afinados, àquela altura pareciam ter sempre as mesmas opiniões.
O sol declinava rapidamente. O inverno afastava as pessoas e, logo, estariam plenamente sozinhos. Praticamente já não se escutava nenhuma voz, senão as das aves marinhas, rivalizando com a quebradeira das ondas.
Tudo estava perfeito. Silêncio, solitude, penumbra, frio, natureza. Um cenário perfeito.
Inclinados para frente, paralelos, contemplaram longamente o mar. De vez em quando, olhavam em redor. À direita, rochas e oceano. À esquerda, um semicírculo de areia clara, pisoteada, onde algumas vezes haviam deitado e se beijado longamente. À frente, azul e azul, com uma ilha ao longe. Navios apareciam a quilômetros.
O vento aumentava, provocando os primeiros calafrios. Os casacos começavam a se mostrar ineficientes. Foi por isso que interagiram pela primeira vez. Olharam-se. Ele a abraçou, mas passou o braço por dentro do casaco, pois queria senti-la mais de perto. Ela se largou nele, protegendo as mãos. Ficaram assim um pouco e depois se sentaram um de frente para o outro. Continuavam incapazes de falar. Dialogaram assim, pupila a pupila, numa paixão triste, desesperada e ruinosa. Pareceram de repente bem mais velhos do que os seus dezesseis anos cada um. Mesmo assim, o brilho do olhar, apagado há alguns meses, quando os problemas começaram, reacendeu. Eles se amavam. Tiveram disso mais certeza do que nunca. E selaram tal convicção com o beijo mais ardente que já haviam experimentado, que pode ter durado um instante ou uma hora. Tanto faz. Para eles, foi uma sensação de plenitude. E o que vem depois da plenitude simplesmente não importa.
Esqueceram-se dos pais brigando com eles, das acusações, das humilhações. Esqueceram-se do pai dela ameaçando espancá-lo, maldizendo uma intimidade física que jamais tiveram. Estavam tão maravilhados um com o outro que ainda não haviam pensado em sexo. Só o pai dela tinha pensado nisso. E imposto castigos, cárcere privado e execração familiar. A convivência se tornara insustentável. Não se viam mais. Ela mudara de escola. Aniquilados pela saudade, tiveram nos amigos seus intermediários. As juras de amor viraram recados breves, sussurrados ao ouvido nos poucos instantes em que o pai se afastava um pouco, pois ele fiscalizava também os telefonemas e as visitas.
Passadas umas semanas, a vigilância amainou. Não por outro motivo além do cansaço do predador. Ela voltou a sair com suas amigas, sob horários rígidos. E ele foi parar em porta-malas de automóvel, em nesga de escadaria, atrás de balcão de loja e em outros esconderijos absurdos, ensombreados pela solidariedade dos amigos. Durante esses encontros, choraram muitas vezes. E tomaram sua decisão. Esta, contudo, sequer foi comunicada aos amigos. Eles não ajudariam.
Assim, foram parar na beira do mar, naquela quarta-feira. Bem no meio da semana, quarta-feira era um bom dia. Sem qualquer explicação lógica, a data também lhes pareceu perfeita.
Ele tirou do bolso do casaco dois pequenos frascos. Entregou um. Foi quando se olharam mais longamente, sempre no mais absoluto silêncio. O “eu te amo” foi soprado por sorrisos largos. Então ele destampou o vidro e sorveu o líquido de uma vez só, amargo, mas isso não tinha importância. Ela fez o mesmo, mais devagar, porém sem o menor traço de hesitação. Cada movimento era feito mecanicamente, pois os olhos não se afastavam.
Ele pôs os frascos vazios de volta no bolso, para não sujar o local. Consciência ecológica. E quedaram-se ali, desistindo de pronunciar palavras, pela consciência de que em uma vida inteira não diriam tudo o que gostariam. Conscientes, sobretudo, de que é um erro comum, mas crasso, querer pôr tudo em palavras. Abdicaram delas. Sentir é mais importante do que falar.
Sentiram que precisavam de outro beijo. Fazia parte do ritual e estava sendo desperdiçado. Agarraram-se e, no primeiro momento de fúria desde que se haviam conhecido, onze meses antes, beijaram-se com um sentimento de urgência final, de febre, de indecência. Mas não foram além do beijo. Abraçados frente a frente, apoiaram a cabeça um no ombro do outro, lambidos pelo vento vigoroso. As pálpebras fechadas percebiam o escoamento da luz. Restava um traço laranja e rosa no horizonte.
Restava um traço deles, corpo a corpo, num leito de pedra e limo.
Ao amanhecer, tão logo a maré baixou, um pescador encontrou o corpo do adolescente engatado entre rochas. O mar o arrastara e prendera ali. Pensou-se primeiro em acidente e depois em homicídio, mas os frascos continuavam no bolso. Os policiais que, a pedido da família, procuravam a jovem desaparecida, estiveram no local, mas dela somente acharam um lenço de cabelo, miraculosamente conservado entre as vestes do namorado. Os moradores, gente do mar, explicaram quando e onde o corpo deveria ser encontrado. Mas apesar de normalmente estarem corretos, dessa vez erraram. O corpo da moça jamais foi encontrado. E nem o será agora, quando a conta já se faz em anos.
As duas famílias se encontraram na plataforma rochosa. O pai da moça sentiu ódio, mas capitulou ao ver o seu maior inimigo exangue, inerte e parecendo tanto uma criança. Todos sofreram aquela dor sem nome, de perder um filho. E quando o sol subiu, poderoso, foram embora com as almas no mais profundo inverno.

5 comentários:

Anônimo disse...

Ufa!!!! Adorei... Trágica, bela, lírica. Primeiro pensei que talvez fosse uma história real (possivelmente alguma coisa semelhante já aconteceu por esse mundo de meu Deus, sou um romântico!), daí a ligação que te fiz. Mais tarde veio-me ao pensamento a atitude do pai intrasigente que muitos de nós, "adultos responsaveis", reproduzimos diante dos "jovens irresponsáveis". Costumo dizer que tememos que eles reproduzam os erros que cometemos no passado. Tenho uma sobrinha que vive comigo, jovem, que inicia seu primeiro namoro por esses dias, tenho tomado o cuidado de confiar na educação que lhe ofertamos, toda família, e no seu próprio bom senso. Afinal, somos humanos e herdeiros de nós mesmos. Para o bem ou para o mal. Abraços

Frederico Guerreiro disse...

Hum.... isso me lembrou Twin Peaks, não sei por que.

Anônimo disse...

Ganhamos um Shakespeare ao tucupi! Um Romeu & Julieta moderno, melhor que aquele do DiCaprio e da Juliette Lewis!

Yúdice Andrade disse...

Jesiel, há mesmo beleza na tragédia. Pelo menos naquelas que podemos encarar sem o sentido de realidade. Porém, a fantasia pode realmente nos orientar em nossas vidas. Achei interessante a análise pessoal que fizeste sobre a situação familiar mencionada. Fico feliz de saber que algo saído desta cabecinha inquieta serviu para uma reflexão desse nível.
Fred, curiosamente estou assistindo a "Twin Peaks", em DVD, um capítulo por semana. Mas só assisti até o terceiro episódio, portanto ainda não cheguei na parte em que as relações com o meu conto podem ser traçadas.
Francisco, alegra-me agradar ao teu paladar. Mas não me atreveria a comparações com Shakespeare. Gratíssimo pela generosidade. E, a propósito, a parceira de DiCaprio no filme do Baz Luhrmann era a Claire Daynes.

Ana Miranda disse...

Uma vez eu lhe disse, caro Yúdice, que para escrever, basta ter em mãos papel, caneta, (hoje, computador) e imaginação.
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